Palavra de especialista: Foxcatcher, as lutas eram outras

Tempo de leitura: 10 minutos

O especialista de hoje: Edson Coelho

Edson Coelho, escreve crônicas de viagem, fotografa amigos e assiste filmes em pausas.

Contém spoilers.

O som seco, forte e repentino dos golpes de um lutador em um massivo boneco sparring preto enquanto treina sozinho no ginásio. Essa é primeira cena do filme estadunidense Foxcatcher, de 2014. E o eco de lutar sozinho contra uma grande presença resistente que mais parece uma sombra física e concreta soará por todo o filme.

Primeira cena do filme Foxcatcher.
Fonte: supercinemaup.com

O filme é inspirado na história real da relação entre o filantropo John du Pont (Steve Carell) e os irmãos campeões olímpicos de wrestling Mark (Channing Tatum) e Dave Schultz (Mark Ruffalo). O diretor Bennett Miller utiliza elementos que passam do esporte ao poder para mostrar como a relação das três personagens culminará em assassinato. Notam-se algumas divergências ao confrontar a trama do filme com os depoimentos daqueles que vivenciaram a história.

Assim, assumimos que o Foxcatcher não pretende ser uma representação fiel de todos os fatos. Mas antes, um exercício especulativo sobre a imagem de personagens a caminho de um desfecho trágico. Enquanto produto de seu autor, Foxcatcher retrata também como um esporte pode ser um campo propício para que detentores da mistura de dinheiro e poder utilizem o discurso de edificação pessoal e cívica como máscara para íntimas e obscuras questões particulares.

Solidão e fragilidade

A precariedade, solidão e tristeza de Mark iniciam o filme, mostrando como ele treina sozinho, mora sozinho, come sozinho suas refeições simplíssimas. Durante as cenas, é evidenciado como ele sente estar à sombra do irmão mais velho. Além de ser um homem de massa corpórea robusta frequentemente associado à infância e subserviência.

Vê-se um medalhista olímpico dando palestras motivacionais, por um valor muito baixo e substituindo o irmão, numa escola infantil. Antes de sua palestra para os pequenos, ele aparece sentado na sala da diretoria, curvado à espera de um superior – semelhante à criança do lado de fora. Apesar de sua grande solidez, Mark está constantemente curvado, cabisbaixo, parecendo carregar nas costas um peso invisível.

Cena do filme Foxcatcher.
Fonte: imdb.com

Diante de tanta precariedade (material, mas não apenas), não é de se estranhar que ele tenha se sentido atraído pela oportunidade de fazer parte de um time de treino financiado por uma figura importante. E ainda interessada em resgatar valores morais da nação dando suporte àqueles que foram excluídos do apoio que merecem.

Poder e paternalismo

O apoio que John deu para os atletas foi algo jamais vivenciado, que ia desde alojamento nas casas da fazenda a um salário mensal. Ali estavam competidores realmente empenhados em fazer com vigor o trabalho de seus sonhos e vocação. Fora dali a maioria desses homens teriam a vida semelhante à de Mark no início da história, com oportunidades muito reduzidas.

O conhecimento de que a Rússia, muito diferentemente dos EUA, patrocina adequadamente seus lutadores é expressa com ares de despeito, elevando a disputa a proporções de resgate da sensação de superioridade norte-americana. E John du Pont, herdeiro de uma educação que o ensinou a se ver sempre como superior, acredita ser o responsável capaz disto.

“Mark, nós, enquanto nação, falhamos em honrar você”, diz John, o cidadão de bens e de boas intenções aparentemente, enquanto explica seus motivos para financiar atletas de wrestling com a finalidade de vencer os próximos Jogos Olímpicos, os de 1988 em Seul. Então somos apresentados a John du Pont em sua enorme mansão dentro de sua gigante fazenda onde há inclusive um grande ginásio para treinos, muito maior e mais reluzente do que aquele onde Mark treinava.

Mark e sua "luta".
Fonte: imdb.com

Riqueza e poder

A riqueza da família du Pont é perceptível sem muitos esforços – ou é nitidamente visível ou é abertamente verbalizada por John. De fato, os créditos iniciais do filme aparecem sobre imagens de arquivo da aristocrática família du Pont em momentos de ócio – de caça às raposas. Mas seria muito simples reduzir a influência de John ao quesito financeiro. Aos poucos vemos claramente que Mark o enxerga como um referencial afetivo, amistoso e até mesmo familiar (chegam a se referir metaforicamente como pai e filho).

Família du Pont

Frequentemente, os times esportivos são denominados como uma segunda família, onde seus membros desenvolvem uma união de camaradagem e irmandade mesmo inseridos em um ambiente de competição. No filme, não somente Mark tem um elo com John, mas os demais atletas o encorajam e apoiam inclusive em seus momentos insanos.

A determinada altura, John começa a brincar de competir lutando com os atletas. Realmente não passa de uma brincadeira, considerando que seu porte físico e habilidades marciais estão muito aquém dos verdadeiros esportistas. Apesar do visível desconforto, todos entram no delírio de John. Se eles eram apenas uma espécie de empregados se submetendo às vontades do chefe ou colegas tentando inseri-lo em um mínimo de sociabilidade é uma dúvida que talvez a desconfiança reservada de John também o faça ter.

O mais provável é que este jogo teatral contenha a mescla de ambas as possibilidades. Em depoimentos reais, alguns atletas disseram tentar incorporar laços de amizade com John por ele parecer alguém muito carente e solitário. Simultaneamente, muitos deles fizeram vistas grossas a casos de racismo, por exemplo, conscientes de que eram dependentes dos auxílios que o filantropo os oferecia.

Pai e mãe

Assim como Mark, John é associado frequentemente a uma criança. De fato, sua mansão é rodeada por vestígios dos adultos de sua família, seu pai ausente, pinturas de aristocratas que parecem vigiar e julgar quem passar diante deles. Há uma cena onde Mark vai ao banheiro e sente incomodado com o retrato de uma mulher colocado desconfortavelmente na parede. Em um ambiente assim cresceu e vive John, entre inúmeros objetos simbólicos, bandeiras da nação-mãe e a figura austera da Sra du Pont, sua mãe.

John cita sua mãe frequentemente e, nos momentos de sinceridade mais alcoólica, o faz de maneira nada edificante. Ela é a figura conservadora e controladora de quem John parece querer se rebelar praticando wrestling, justamente o esporte que ela não aprova por considerar vil e repudiar qualquer traço de inferioridade no filho. Tanto que é simbólico John não gostar de cavalos e libertá-los do estábulo após a morte de sua mãe, a dona dos animais.

Instintos

O tom animalesco impera durante o filme. Poderíamos chegar ao clichê de associar a luta à liberação de instintos e fúria animalescos, da liberação dos animais escondidos dentro do homem. Mas a metáfora à raposa é mais instigante quando aplicada a Mark, já que o animal aparece frequentemente em suas cenas. Lembra uma caçada a imagem de John correndo entre as árvores da fazenda como um animal fugitivo – até se deparar com a mãe de John e seus cavalos. Cavalos e cães eram utilizados na caça a raposas – “foxcatcher” é o caçador, o dominante. A raposa é a vítima, como aquela empalhada no chalé do Mark, para o qual ele olha.

Fonte: imdb.com

John se auto intitula A Águia, símbolo de poder e agilidade, de quem enxerga de longe e voa alto. Suas metáforas de discurso edificante funcionam como disfarce para um  animal predador. Objetos e pinturas de águias em posição de ataque pairam sobre seu escritório onde ele, amparado por uma bandeira dos EUA da época da guerra civil, toma suas decisões, faz acordos, captura vítimas. A Águia é o símbolo nacional dos Estados Unidos, nação a qual John chega a se comparar quase que unificando ambos.

Cena do filme Foxcatcher.
Fonte: imdb.com

Vê-se um herdeiro milionário que cresceu sozinho acreditando que dinheiro e influência lhe dariam aquilo que ele quisesse e que agora direciona suas energias à wrestling, direta ou indiretamente. Fica claro no filme que o que ele quer é ser como os esportistas, forte, vigoroso, determinado, apaixonado, dominador de uma maneira que ele não consegue ser, fisicamente. A demonstração de força física de John ou se dá por meio de mentira, quando ele compra suas vitórias nas competições masters, ou de artefatos externos ao seu corpo, as armas.

John e as armas aparecem numa relação íntima com ecos patrióticos. Ele usa arma para treinar tiro ao alvo com policiais locais – em sua propriedade; caçar animais nos bosques; atirar para o alto dentro do ginásio como “incentivo” para os jovens; para sua segurança pessoal num estado crescente de paranóia; e por, fim à fatalidade.

No filme as armas aparecem numa relação íntima com ecos patrióticos.
Fonte: imdb.com

Afeição fantasiosa

Dave é mostrado como o elemento apaziguador de conflitos, desde sua primeira entrada onde aparece treinando com o irmão hostil que o golpeia propositalmente. Dave simplesmente enxuga o sangue, continua o treino. Talentoso nos domínios de sua profissão, parece enxergar além das defesas que os outros transformam em agressividade. Não há dúvidas de que há amor na relação com o irmão, que ele cuida, protege e incentiva.

Além das cenas de Dave com sua mulher e filhos, há pouco espaço para momentos de afeto no filme. A relação de John e sua mãe é distante, castradora e direcionada para uma rebeldia autorreprimida e mal canalizada. Mesmo Mark aparentando um apelo de servidão e reverência a John, não é de se ignorar que poderia haver sentimentos também. Assim como John parecia ter Mark como um possível companheiro, mesmo que na cena mais íntima deles Mark apareça sentado no chão como um fiel cão, ainda que a paranóia de John o fizesse desconfiar de seus amigos eleitos. Dave realmente é o vetor sentimental do filme, seja no olhar de piedade por John ou nos momentos de confortar o irmão, onde os abraços por mais carinhosos ainda parecem carregar a rigidez de uma luta.

Cena do filme Foxcatcher.
Fonte: imdb.com

Entretanto, mesmo participando do teatro de John, Dave também tem uma personalidade altiva que é muito baseada na consciência de seu valor próprio. Quando ele começa a dar as regras do jogo e não se submeter totalmente a John – como faz Mark – o filantropo vai mais fundo em seu surto. No filme, este choque de poderes, inaceitável para John, levará ao assassinato de Dave.

Foxcatcher vs Menina de Ouro

Foxcatcher aborda o esporte diferentemente de outro filme de muito sucesso sobre um treinador e uma lutadora, Menina de Ouro (EUA, 2004). Este, a despeito da história pessoal das personagens, faz uso dos elementos esportivos de forma mais presente, edificante, filosófica, e de certo modo, mais usual.

O que ambos os filmes têm em comum é o retrato de esportistas com escassos recursos e grandes dificuldades financeiras para se manter e seguir sua vocação, e que acabam projetando em uma figura de autoridade a necessidade de direcionamento e também de afeto. A noção de trabalhar duro, dar o sangue, superar os limites físicos, psicológicos e inevitavelmente sociais são abordados de maneiras distintas em cada filme.

Esporte como superação

Em Menina de Ouro, Maggie (Hilary Swank) quer que Frankie (Clint Eastwood) seja seu treinador. Este, que após superar seus preconceitos, investe no talento dela de maneira psicológica e física, algo como o Dave de Foxcatcher faz. Este não é o papel cumprido por John du Pont no filme de 2014. Ali ele não é o treinador, mas o mecenas das lutas; não tem talento ou habilidade, mas dinheiro e influência. Suas palavras de ânimo e incentivo tem o ar de uma auto-ajuda barata recheada de clichês que precisam ser repetidos frequentemente para que se comece a acreditar neles.

Diferentemente dos pensamentos que expressam a condição transformadora intrínseca aos esportes contidos no elogio ao autoconhecimento que Frankie faz ou nos aforismos narrados pelo ex-lutador Scrap (Morgan Freeman) em Menina de Ouro. John usa suas palavras como mais uma máscara para encobrir suas verdades interiores. Porém, uma máscara que nos deixa ver sua crescente raiva e descontrole fantasiados de patriotismo, meritocracia e benevolência.

Solidez e solitude

Mark tem um corpo forte pois sua trajetória exige que ele todo seja resistente, sua profissão demanda que seu corpo seja um muro, e seus frequentes socos em si mesmo o lembram de que é preciso ter uma barreira inclusive contra seus próprios ataques. A dureza e rigidez exigidas de quando se precisa enfrentar privações, seja de conforto material ou emotivo.

Finalmente, o filme que começou com o medalhista olímpico dando palestras motivacionais para crianças por uma ninharia, termina com ele no ringue de uma luta popular mais tendenciosa ao sensacionalismo que às artes marciais. Se vimos uma sorte de dificuldades serem por um momento substituídas pela esperança para no final cair no ressentimento minutos antes de presenciarmos uma tragédia, agora nos deparamos com uma platéia sedenta por socos sangrentos aos urros de “USA! USA!”. Ouvimos o coro do patriotismo alcançando graves tons.

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